domingo, 8 de março de 2015

As mulheres no rádio internacional

A voz feminina é tida como uma das mais complexas, pois atinge grande parte do sistema auditivo do cérebro e consegue despertar maior atenção, ou desatenção, sobretudo, dos homens.

Durante a II Guerra Mundial, emissoras de rádios japonesas utilizavam as mulheres para conduzir a programação destinada aos soldados americanos. O fato mais notável foi de Iva Toguri, por usar a sedução da voz feminina para desanimar os soldados nos esforços da guerra. Principalmente porque as vozes das mulheres lembravam suas mães e esposas, filhos deixados nos Estados Unidos... O conforto familiar era bem distinto das situações de guerra.
QSL da Rádio Internacional da China, antiga "Rádio Beijing", década de 70. 
Milícia de mulheres chinesas e criança, exercendo atividades militares ao som de um rádio, ao fundo.

Em se tratando da radiodifusão internacional parece que sua finalidade não contemplava essa abordagem. Sua principal intenção era transmitir informações, sobretudo da Guerra Fria, em diversas línguas, inclusive em português, para várias partes do mundo. Isto é, sua programação não é voltada para os campos de conflitos, mas para um público externo, distante do país emissor.

A presença das mulheres nessas emissões assume três condições, que considero muito importante: 1) a mulher comunicadora; 2) as pautas femininas no rádio; 3) as mulheres que ouvem rádio.

Mulher Comunicadora

A questão de gênero não parece tão necessária no rádio. A não ser para criar empatia com sua audiência sobretudo em propostas específicas, tal como os programas infantis. As emissoras religiosas como a Rádio Trans Mundial (Bonaire) e Rádio HCJB – A Voz dos Andes (Equador) sempre utilizavam essas estratégias. Os ouvintes mais veteranos se lembram de Tia Helena, comunicadora infantil que dava conselhos e atendia as cartas da garotada de todo o Brasil no programa Crianças para Cristo – Rádio HCJB.

Tia Helena Arndt (centro) homenageada pela Rádio HCJB
nos 50 anos da emissora, 2014. Foto: Facebook da HCJB
Eu sempre gostava de ouvir Mara Murce no programa Conversando com os Ouvintes (Rádio A Voz da Alemanha) e Ana Cavalcante da BBC de Londres nos programas de cartas... Considerava essas vozes muito agressivas e cativantes.

Verônica Balderas (Rádio Cairo), Maria Aparecida e Eunice Carvajal (Rádio HCJB), Adriana de Freitas (Rádio França Internacional), Letícia Machado (Rádio CVC) Marilena (Voz da América), as locutoras chinesas da CRI... Enfim, todo ouvinte se lembra de uma voz em particular. No meu caso, ainda guardo a lembrança e o sotaque de muitas dessas vozes, que desapareceram no fading das Ondas Curtas.

Entretanto, talvez, muitos ouvintes concordem comigo: não existe uma emissora tão feminina quanto a Rádio Taiwan Internacional (RTI). A sessão espanhola da RTI (Rádio Rosa) investiu em jovens comunicadores, onde a mulher chegou a assumir quase 90% das atividades da emissora. Alguém se lembra de Lilli Chou? Até hoje ainda não ouvir outra mulher tão espontânea fazendo a programação internacional. Fantástica!!

As pautas femininas no rádio

A programação internacional perpassa por um crivo ideológico característico da Guerra Fria. Nela sempre esteve evidente o uso da palavra e das informações pertinentes à iconografia dos sistemas capitalistas x comunistas.


Mulher tecelãQSL da Rádio Budapeste (Hungria) 
década de 70.
Recorrendo aos materiais radiográficos - cartões QSLs e schedules - é possível encontrar uma proposta voltada a retratar o papel das mulheres e a posição que assumiam no escopo das pautas radiofônicas internacionais.

Nessas pesquisas tenho observado que a mulher sempre aparece nos meios de produção artesanal e nos esportes, principalmente em países comunistas. As imagens do Leste europeu trazem uma grande sacada ao remeter as atividades femininas aos costumes tradicionais. Até porque em vários desses países a população feminina sempre esteve dedicada às atividades domésticas, tecelagens, culinárias... 

A China também não foge à regra. Em particular potencializa o vigor das mulheres guerrilheiras, treinadas para exercer tarefas militares, primeiros socorros. Principalmente durante a tensão da década de 70, quando a China estava se aproximando dos Estados Unidos.

Já em países capitalistas, as imagens das mulheres estão mais centradas na nobreza, nas obras de artes, cuidando dos filhos ao lado da família. A representação da mulher na cultura tradicional aparece mais em países de pequena extensão territorial. As crianças também ocupam esse espaço, nas festividades ou nas brincadeiras infantis. 

Um fato em comum, ambos os sistemas, é o apoio às lutas femininas. Em 1975 a ONU realiza no México a I Conferência do Ano Internacional da Mulher. Várias emissoras comunistas veicularam essa campanha nas suas produções, conforme se vê no QSL da Rádio Berlin Internacional (RBI) 1975. Curiosamente a mulher também parece ser associada ao arquétipo da paz mundial.

QSL da Rádio Áustria Internacional, retratando
a família imperial na Hungria. 
Nas emissoras que não se alinham às superpotências, as programações são voltadas a abordar o tema feminino na sua conjuntura mais pontual. Discussões sobre saúde, educação, emprego são muito comuns nessas programações. Em paralelo às emissões radiofônicas ainda são utilizados os “serviços de transcrição”. Neles são traduzidos e produzidos vários programas gravados para retransmissão em emissoras parceiras de outros países, incluindo o Brasil.

O Departamento Brasileiro da Rádio Nederland (Holanda), que funcionou até a década de 90 produziu várias séries sobre o tema. Os mais conhecidos são “A mulher hoje”, gravados numa série em vinil na década de 80. E mais recente um estudo sobre as mulheres afrodescendentes no Estado do Pará – CD “Vozes negras no Brasil”.

As mulheres que ouvem rádio

O estudo sobre a audiência internacional feminina no Brasil ainda é incipiente. Durante os anos 90 o fluxo dos programas de cartas conduzia vários nomes de mulheres trocando correspondências, pedindo música, mandando poesias, interessadas em fazer amizades.
QSL da Rádio Berlin Internacional (1975) dedicado
ao "Ano Internacional da Mulher, criado pela ONU.
Várias mulheres participavam atentamente da programação da Voz da América, Rádio Nederland, A Voz da Alemanha, Rádio França Internacional. Ultimamente ainda é possível acompanhar suas intervenções nos programas de cartas, a exemplo do “Ponto de Encontro” da NHK World - Rádio Japão.
Kariane Moldesky ouvindo o rádio,
após uma pausa nas atividades de
 artesanatos.
 Foto: Facebook.

A recepção feminina nas Ondas Curtas parece voltada a um sentido próprio da época. Decerto, o interesse feminino até a década de 90 no rádio internacional era por uma alternativa de comunicação que preenchia a necessidade de trocar informações, formar novas amizades. Nos dias atuais a internet abriu um leque de possibilidades. Entre elas, a facilidade de se comunicar, a interatividade e rapidez da informação. A possibilidade de ao invés de receber também tornar-se uma protagonista da informação.

Durante pesquisa que realizei com os radioescutas do DXCB em 2004, dentre uma amostra de 22 ouvintes selecionados em todo o país, apenas uma mulher constou nessa relação. Seu nome é Kariane Moldesky, residente em Nova Prata – Rio Grande do Sul.

Kariane possui uma experiência interessante na audiência internacional. Descendente de poloneses, começou ouvi o rádio logo na infância diante da necessidade de acompanhar a língua pátria, veiculada pela Rádio Polônia  Internacional.

Essa sintonia possibilitou contato com várias emissoras, incluindo a Rádio Internacional da China, Rádio Japão e Rádio Praga. Kariane participa ativamente da programação. E ainda de um rol de amizade com os associados do DX Clube do Brasil - DXCB e outros clubes dexistas, que pesquisam e ouvem rádio. Também exerce uma mediação muito importante entre as comunicações postais e radiofônicas com seu Tio Geraldo, que é deficiente visual e ouve as emissões estrangeiras.


A tradição cultural feminina retratada
numa série de QSLs da Rádio HCJB,
Festas tradicionais o Equador.
Na época da pesquisa Kariane falou do seu interesse em ouvir outros países para fortalecimento da língua, conhecer a cultura e as formas de vida de outros povos. Também, como boa dona de casa, aproveita seus segredos de culinária para preparar a comida da família, experimentando as receitas que ela anota na programação radiofônica, em especial a Rádio Praga (Rep. Tcheca).

Minhas conclusões... Não obstante ao interesse políticos das superpotências, creio que o rádio internacional tornou-se um um instrumento legítimo em dar voz à mulher e debater sua posição e necessidades no curso da Guerra Fria. Hoje as vozes femininas ecoaram por outras mídias e tornaram-se importantes para fortalecer a democracia da informação e construir um mundo mais igualitário. Lembrar do rádio e dessas mulheres, que assumiram condições tão distintas, é ter em mente que suas mensagens são importantes para ampliação da consciência e nos ajudam a acalmar as tensões mais intensiva do mundo moderno.

Parte desse trabalho consta na minha dissertação de Mestrado, defendida em 2011, pela UEFS.
Leia a poesia "Mulheres do Rádio"

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