A voz
feminina é tida como uma das mais complexas, pois atinge grande parte do
sistema auditivo do cérebro e consegue despertar maior atenção, ou desatenção,
sobretudo, dos homens.
QSL da Rádio Internacional da China, antiga "Rádio Beijing", década de 70. Milícia de mulheres chinesas e criança, exercendo atividades militares ao som de um rádio, ao fundo. |
Em se
tratando da radiodifusão internacional parece que sua finalidade não
contemplava essa abordagem. Sua principal intenção era transmitir informações,
sobretudo da Guerra Fria, em diversas línguas, inclusive em português, para
várias partes do mundo. Isto é, sua programação não é voltada para os campos de
conflitos, mas para um público externo, distante do país emissor.
A
presença das mulheres nessas emissões assume três condições, que considero
muito importante: 1) a mulher comunicadora; 2) as pautas femininas no rádio; 3)
as mulheres que ouvem rádio.
Mulher Comunicadora
A
questão de gênero não parece tão necessária no rádio. A não ser para criar
empatia com sua audiência sobretudo em propostas específicas, tal como os
programas infantis. As emissoras religiosas como a Rádio Trans Mundial
(Bonaire) e Rádio HCJB – A Voz dos Andes (Equador) sempre utilizavam essas
estratégias. Os ouvintes mais veteranos se lembram de Tia Helena, comunicadora
infantil que dava conselhos e atendia as cartas da garotada de todo o Brasil no
programa Crianças para Cristo – Rádio HCJB.
Tia Helena Arndt (centro) homenageada pela Rádio HCJB nos 50 anos da emissora, 2014. Foto: Facebook da HCJB |
Eu
sempre gostava de ouvir Mara Murce no programa Conversando com os Ouvintes
(Rádio A Voz da Alemanha) e Ana Cavalcante da BBC de Londres nos programas de
cartas... Considerava essas vozes muito agressivas e cativantes.
Verônica
Balderas (Rádio Cairo), Maria Aparecida e Eunice Carvajal (Rádio HCJB), Adriana
de Freitas (Rádio França Internacional), Letícia Machado (Rádio CVC) Marilena
(Voz da América), as locutoras chinesas da CRI... Enfim, todo ouvinte se lembra
de uma voz em particular. No meu caso, ainda guardo a lembrança e o sotaque de
muitas dessas vozes, que desapareceram no fading das Ondas Curtas.
Entretanto,
talvez, muitos ouvintes concordem comigo: não existe uma emissora tão feminina
quanto a Rádio Taiwan Internacional (RTI). A sessão espanhola da RTI (Rádio
Rosa) investiu em jovens comunicadores, onde a mulher chegou a assumir quase
90% das atividades da emissora. Alguém se lembra de Lilli Chou? Até hoje ainda
não ouvir outra mulher tão espontânea fazendo a programação internacional.
Fantástica!!
As pautas femininas no rádio
A
programação internacional perpassa por um crivo ideológico característico da
Guerra Fria. Nela sempre esteve evidente o uso da palavra e das informações
pertinentes à iconografia dos sistemas capitalistas x comunistas.
Mulher tecelã. QSL da Rádio Budapeste (Hungria) década de 70. |
Recorrendo aos materiais
radiográficos - cartões QSLs e schedules - é possível encontrar uma proposta
voltada a retratar o papel das mulheres e a posição que assumiam no escopo das
pautas radiofônicas internacionais.
Nessas pesquisas tenho
observado que a mulher sempre aparece nos meios de produção artesanal e nos
esportes, principalmente em países comunistas. As imagens do Leste europeu trazem
uma grande sacada ao remeter as atividades femininas aos costumes tradicionais.
Até porque em vários desses países a população feminina sempre esteve dedicada
às atividades domésticas, tecelagens, culinárias...
A China também não foge
à regra. Em particular potencializa o vigor das mulheres guerrilheiras,
treinadas para exercer tarefas militares, primeiros socorros. Principalmente
durante a tensão da década de 70, quando a China estava se aproximando dos
Estados Unidos.
Já em países
capitalistas, as imagens das mulheres estão mais centradas na nobreza, nas
obras de artes, cuidando dos filhos ao lado da família. A representação da
mulher na cultura tradicional aparece mais em países de pequena extensão
territorial. As crianças também ocupam esse espaço, nas festividades ou
nas brincadeiras infantis.
Um fato
em comum, ambos os sistemas, é o apoio às lutas femininas. Em 1975 a ONU
realiza no México a I Conferência do Ano Internacional da Mulher. Várias
emissoras comunistas veicularam essa campanha nas suas produções, conforme se
vê no QSL da Rádio Berlin Internacional (RBI) 1975. Curiosamente a mulher
também parece ser associada ao arquétipo da paz mundial.
QSL da Rádio Áustria Internacional, retratando a família imperial na Hungria. |
Nas
emissoras que não se alinham às superpotências, as programações são voltadas a
abordar o tema feminino na sua conjuntura mais pontual. Discussões sobre saúde,
educação, emprego são muito comuns nessas programações. Em paralelo às emissões
radiofônicas ainda são utilizados os “serviços de transcrição”. Neles são
traduzidos e produzidos vários programas gravados para retransmissão em
emissoras parceiras de outros países, incluindo o Brasil.
O
Departamento Brasileiro da Rádio Nederland (Holanda), que funcionou até a
década de 90 produziu várias séries sobre o tema. Os mais conhecidos são “A
mulher hoje”, gravados numa série em vinil na década de 80. E mais recente um
estudo sobre as mulheres afrodescendentes no Estado do Pará – CD “Vozes negras
no Brasil”.
As mulheres que ouvem rádio
O estudo
sobre a audiência internacional feminina no Brasil ainda é incipiente. Durante
os anos 90 o fluxo dos programas de cartas conduzia vários nomes de mulheres
trocando correspondências, pedindo música, mandando poesias, interessadas em
fazer amizades.
QSL da Rádio Berlin Internacional (1975) dedicado ao "Ano Internacional da Mulher, criado pela ONU. |
Várias mulheres
participavam atentamente da programação da Voz da América, Rádio Nederland, A
Voz da Alemanha, Rádio França Internacional. Ultimamente ainda é possível
acompanhar suas intervenções nos programas de cartas, a exemplo do “Ponto de
Encontro” da NHK World - Rádio Japão.
Kariane Moldesky ouvindo o rádio, após uma pausa nas atividades de artesanatos. Foto: Facebook. |
A
recepção feminina nas Ondas Curtas parece voltada a um sentido próprio da
época. Decerto, o interesse feminino até a década de 90 no rádio internacional
era por uma alternativa de comunicação que preenchia a necessidade de trocar
informações, formar novas amizades. Nos dias atuais a internet abriu um leque
de possibilidades. Entre elas, a facilidade de se comunicar, a interatividade e
rapidez da informação. A possibilidade de ao invés de receber também tornar-se
uma protagonista da informação.
Durante
pesquisa que realizei com os radioescutas do DXCB em 2004, dentre uma amostra
de 22 ouvintes selecionados em todo o país, apenas uma mulher constou nessa
relação. Seu nome é Kariane Moldesky, residente em Nova Prata – Rio Grande do
Sul.
Kariane
possui uma experiência interessante na audiência internacional. Descendente de
poloneses, começou ouvi o rádio logo na infância diante da necessidade de
acompanhar a língua pátria, veiculada pela Rádio Polônia Internacional.
Essa
sintonia possibilitou contato com várias emissoras, incluindo a Rádio
Internacional da China, Rádio Japão e Rádio Praga. Kariane participa ativamente
da programação. E ainda de um rol de amizade com os associados do DX Clube do
Brasil - DXCB e outros clubes dexistas, que pesquisam e ouvem rádio. Também
exerce uma mediação muito importante entre as comunicações postais e
radiofônicas com seu Tio Geraldo, que é deficiente visual e ouve as emissões
estrangeiras.
A tradição cultural feminina retratada numa série de QSLs da Rádio HCJB, Festas tradicionais o Equador. |
Na época da pesquisa
Kariane falou do seu interesse em ouvir outros países para fortalecimento da
língua, conhecer a cultura e as formas de vida de outros povos. Também, como
boa dona de casa, aproveita seus segredos de culinária para preparar a comida
da família, experimentando as receitas que ela anota na programação
radiofônica, em especial a Rádio Praga (Rep. Tcheca).
Minhas conclusões... Não obstante ao interesse
políticos das superpotências, creio que o rádio internacional tornou-se um um
instrumento legítimo em dar voz à mulher e debater sua posição e necessidades
no curso da Guerra Fria. Hoje as vozes femininas ecoaram por outras mídias e
tornaram-se importantes para fortalecer a democracia da informação e construir
um mundo mais igualitário. Lembrar do rádio e dessas mulheres, que assumiram
condições tão distintas, é ter em mente que suas mensagens são importantes para
ampliação da consciência e nos ajudam a acalmar as tensões mais intensiva
do mundo moderno.
Leia a poesia "Mulheres do Rádio"
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